sexta-feira, 13 de março de 2015

A arte do desencontro - final

Domingo, 04 de janeiro de 2015, Lisboa, Portugal.

Enfim, era chegado o momento da partida. Deixar Portugal, um ao outro, sem saber como se rotularem. Que eram agora? Amigos? Inimigos? Ex-amantes? Não sabiam. Contudo, já não eram os mesmos. Já não eram a imagem outrora a milhares de quilômetros, já não eram os que se encontraram no aeroporto de Lisboa em um abraço terno, já não eram os que se entregaram com fervor em uma noite em Florença. Perderam-se demais ao longo desse encontro...
Era um dia lindo de sol na capital portuguesa. Havia ainda algumas horas a serem aproveitadas antes do adeus final. Comidinha, filminho, pipoca e uma boa dose de autocontrole. Como não brigar quando se queriam matar? Ela, por ele não ter sido nada do que ela imaginara e por tê-la cativado tanto sem querer ser responsável por isso; ele não lera O pequeno príncipe ainda. Ele, por ela também não ter sido nada do que ele sonhara. Ela era o seu sonho ao contrário, um sonho que se desfizera num beijo.
A viagem até o aeroporto era relativamente curta, não havia tempo para reconsiderações sobre todo o trajeto que se iniciara dia 17 de dezembro de 2014 e terminava quase vinte dias depois no mesmo ponto. Era um recomeço?

Em frente à área de embarque, os dois abraçaram-se para nunca mais. Um abraço que envolvia tudo o que não se podiam dizer, tudo o que não saberiam dizer. Ela, incompreensivelmente agarrava-se a ele, queria ficar ali para sempre, e as lágrimas saltaram-lhe sem freio, sem vergonha, sem pensar. Ele a estreitava em seus braços numa entrega, até então, negada. Em meio às lágrimas dela, ele a beijou, e ela quis que aquele beijo jamais acabasse. Ele lhe enxugou as lágrimas, consolava-a com os olhos e as mãos cheios de um carinho e de uma compreensão que ela tanto buscara durante aquela viagem. Enfim, encontrara, era, porém, demasiado tarde. No tardar da hora, desvencilharam-se obrigatoriamente. Ela não olhou para trás, ele também não, seguiram seus caminhos. Quem os visse ali, numa despedida tão doída e tão doce, julgaria, sem dúvida, tratar-se de um casal apaixonado. Quem não os terá invejado naquele momento tão inexplicado? Mas como o coração do outro é terra de ninguém, ela voltava pesada de ressentimentos e com o coração em frangalhos. Ele sentia-se enfim livre do peso de um sonho que não foi. De tudo, restou aos dois a certeza de nunca haverem-se encontrado.


quinta-feira, 12 de março de 2015

A arte do desencontro

Sábado, 03 de janeiro de 2015, Lisboa, Portugal.

Hora de despedir-se de Roma, Não puderam acordar cedo para um último passeio. Saíram, como sempre, já no limite do horário para o voo.
A viagem chegara a sua reta final. Haviam sido quase vinte dias de Europa. O velho mundo, o sonho de nove em cada dez não europeus. Mas para ela, era simplesmente como se não estivesse ali. Perguntava-se o que havia feito do sonho mais antigo, da euforia do primeiro momento, da visão e da sensação de tudo aquilo. Havia desperdiçado o seu sonho maior. Não amou um italiano nem um espanhol, nem mesmo comera uma pizza de verdade em Roma. Uma alma inundada de tristeza não reconhece a alegria ao lado, não a desfruta nem se deixa contagiar por ela. Sentia que tudo havia sido em vão. Havia cometido o pior dos erros, encolhera a própria alma.
Ao lado, ele escutava música e fingia dormir, alheio a toda a turbulência na mente dela. No último voo juntos, nada mudou. Ele seguia no seu mundinho, ela afundava em suas conclusões terríveis. Escrevia na tentativa de livrar-se de toda aquela angústia que lhe sufocava o peito. Escreveu durante todo o voo. Disse ali tudo que talvez jamais pudesse dizer, enquanto ele mantinha-se distante o suficiente para que nada daquilo pudesse chegar a tocá-lo.
No aeroporto de Lisboa, ela sentiu a dor do contraste. Naquele exato lugar, há pouco mais de duas semanas, tinha em si todos os sonhos do mundo. Vivera a alegria do encontro e abrira o seu coração para dar e receber o amor com que sempre sonhara, o amor que ele conquistara, o amor que ele cativara pacientemente e que ela decidira permitir-se sentir.  Naquele momento, tudo era possível.  Agora, via destruída toda a ilusão que ele despertara nela. Não encontrava melhor palavra para descrever-se que infeliz. O céu lisboeta pintava-se de laranja num crepúsculo envolvente e romântico. Ela olhava, sentia e não podia sorrir. Ao seu lado, ele tentava objetivamente reencontrar o caminho ao hotel. Ônibus, metrô. Ela deixava ele decidir sempre, não se importava, não tinha opinião, não tinha vontades.
No hotel, um banho e o choque de que realmente era o fim a fez desejar fazer algo bom, divertir-se um pouco. Vestiu-se para ele, cuidadosamente. Pôs a melhor lingerie e o melhor sorriso. Jantaram num bom e tradicional restaurante português. Embriagaram-se em meio à Avenida da Liberdade e voltaram mais leves ao hotel. Ensaiaram uma dança que não encaixou. Ela bailava com a graça e sensualidade só permitidas a uma morena brasileira depois da meia-noite. Ele era o que era, um físico supertalentoso e meio antissocial que dançando pouco se distinguia de um robô não articulado. Ela quis rir, mas sabia que o constrangeria e, ao contrario dele, sempre cuidava para não magoá-lo.

Preparou-se para a última noite. Queria esquecer tudo e pertencer a ele uma vez mais. Vestiu seu melhor olhar, seu melhor sorriso e seu decote mais profundo. Ele não resistiu, depois de três dias longe do corpo dela, ele lançava-se a ele com um desejo que era quase fúria e ela sentia o poder da sua feminilidade a envolvê-lo. Aquilo produzia nela uma sensação indizível. Mas logo ele já não queria apenas penetrá-la e compartilhar prazer, queria usá-la a seu bel prazer, do seu jeito, e ela não viu prazer nisso. Disse não e quase vacilou, mas quase vinte dias eram suficientes para saber que ele não valia o sacrifício. Quando viera, estava disposta a dar a ele cada rincón do seu corpo, cada centímetro de sua alma. Ele, porém, negara-se a provar da sua alma, do seu amor. Ela, pensando em tudo isso, resolvera enfim pensar em si e negar-se a  ele. Impedido de sua vontade, ele agiu como o menino mimado que sempre fora e a rechaçou. Ela, magoada, afastou-se, dormiu sozinha outra vez, mas dessa vez, ela o odiava demais para chorar.


domingo, 8 de março de 2015

A arte do desencontro

Sexta-feira, 02 de janeiro de 2015, Roma, Itália.


Terceiro dia em Roma e ainda não haviam visto muito. O cansaço os consumia. O turismo estava mais para obrigação que para diversão. Estavam em Roma, em pouco tempo não estariam mais. Havia muito o que ver e não dava para ficar na cama a curtir toda a preguiça que vinha com o inverno. Caminare a ver o Vaticano!
O clima entre eles não era dos mais amistosos. Ela anulava-se ao máximo para não incomodá-lo, ele incomodava-se sempre. Com a forma como ela o olhava, como caminhava, como mantinha-se desatenta. Toda ela era um incômodo, ela sentia, e desejava poder ser invisível.

Tranvia, metrô, Coliseu. Fotos, fotos, fotos. Dele, porque ela já não se importava. Uma dor começou a importuná-lo, tinha a cabeça em colapso. Antes de qualquer coisa, ele a tratou mal. Ela aceitou o maltrato diminuindo-se um pouco mais, já quase não existia. Preocupava-se com ele. ¿Qué le pasaba que le dolía tanto la cabeza? Cuidou dele. Tratou de achar o camino, apesar de nunca prestar atenção e ser péssima com mapas. Amava-o apesar de tudo e não queria que nada de ruim lhe acontecesse.
Foi um dia de distâncias. Ela acreditava que as religiões mais afastavam que reuniam as pessoas. No Vaticano não foi diferente. Em meio ao mundo sagrado católico, eles caminhavam no meio de uma multidão que nada mais podia compartilhar. Todos de olhos e ouvidos atentos.  Foi um dia de paz em meio a tantos passos e burburinhos, além da voz da guia a gritar-lhes nos ouvidos. Quase não se falaram, não puderam brigar. Mas, uma hora a visita acabou e eles foram expulsos do paraíso dos mundinhos inviduais e recomeçaram a incansável desarmonia. Vencida, ela resignou-se uma vez mais em busca de alguma paz. Sempre era melhor quando escolhia não falar, não brigar, não expor-se. Por dentro ela ia definhando, por fora, a expressão entregava-lhe os pensamentos. Tinha o sorriso cada vez mais triste e dos olhos sempre reluzentes, encantadores, expressivos não escapava nada mais que um pranto oculto.

No último dia em Roma, não houve amor, não houve carinho, não houve perdão. Na cidade mais sensual da Itália, não houve sexo. Não houve nada. No meio da noite, ele quis tocá-la, mas algo o fez recuar, ela não insistiu. Adormeceu na solidão, entre mágoas e desejos.

A arte do desencontro

Quinta-feira, 01 de janeiro de 2015, Roma, Itália.

O primeiro dia do ano iniciara-se turbulento, mas ao menos ela conseguira dormir. Ele iniciou a conversa. Funcionava como uma espécie de esquizofrênico, num eterno câmbio de personalidade que ia do cruel ao extremamente terno. Era capaz de dizer a ela as coisas mais duras e cinco minutos depois esfregar-se nela como um gato dengoso a buscar carinho, falando manso e movendo-se com doçura desmedida. A cabeça dela não entendia aquilo. Era louco? Como em três anos de convivência ela não percebera aquela personalidade no mínimo perturbada?
Desceu em busca do café da manhã, quase hora do almoço e ela descia em busca do café. Em dia de ano novo, passando férias em Roma com aquele que ela imaginava ser o amor da sua vida, era quase cômico ela a lutar com seu inglês de merda para trazer aos dois o café que ele, obviamente, teve de criticar. Mas era isso ou morrer de fome. Era não moveria o magro traseiro para usar seu inglês fluente e fazer um favor aos dois.
O primeiro dia de visita histórica a Roma foi um delírio para ele, uma anestesia para ela. Ainda sentia-se mal pelo que ocorrera na madrugada e o psicológico parecia afetar-lhe o físico. Sentia-se mal, como se em cada célula sua houvessem injetado lactose. Tinha no rosto um riso curto e no coração uma lágrima longa. 



sábado, 7 de março de 2015

A arte do desencontro

Quarta-feira, 31 de dezembro de 2014, Roma, Itália.


Era um dia ensolarado na capital italiana, mas andava longe de ser quente. Como em toda grande metrópole, e em pleno 31 de dezembro, a cidade fervilhava. Parecia que todos haviam tido a mesma ideia deles, passar o réveillon em Roma. Só para variar um pouco, eles estavam exaustos. Após uma noite regada à cerveja e sexo, com direito a neve na saída, eles não haviam descansado muito, além disso, estavam famintos. Muitas opções, escolhas, escolhas, escolhas. Foram parar num restaurante indiano. Alguém explica histórica social e politicamente por que há tanto indiano morando em Roma?
Ela sequer conseguia decidir o que pedir. Com o passar dos dias e o tratamento rude que muitas vezes ele dispensava a ela, exigindo sempre respostas racionais rápidas, ela atrapalhava-se com o mínimo. Acabou com um frango excessivamente apimentado e uma porção de batatas fritas, que claro, ele criticou. ¿Estás harto con las papas fritas, eh? Não importava o que ela dissesse, fizesse, como se portasse, nunca era o jeito certo ou a escolha certa para ele. Estava farta. A única coisa que naquele momento lhe provocou alguma graça foi o fato de ele achar estranho haver espinha no peixe que ele comia. Onde esse garoto viveu a sua vida inteira? Lá, peixes são invertebrados? O país pseudodesenvolvido queridinho da América do Sul e logo, a vida na Europa. Nunca o deixaram a par da realidade. Ele parecia saber tudo, perdia-se, porém, nas coisas simples.
O hotel não ficava tão distante do centro histórico, mas era bem esquisito.  O bairro parecia saído de um filme da máfia e dentro do hotel não parecia muito melhor. Um cheiro estranho desprendia-se dali e do quarto ouvia-se tudo ao redor, incluindo as conversas dos quartos vizinhos. “Lovely Roma”, really? Bem, o que esperar de um nome tão clichê? Talvez que fosse ao menos, menos frio.
Réveillon em Roma! Ela tentou alegrar-se com a realidade e animá-lo de alguma forma. Era noite de ano novo, uma noite para muitos drinks, muitos desejos e para recomeços, embora o único transporte que chegasse ali fosse o tranvia e em noite de réveillon só funcionasse até ás 9h30min da noite.
A intenção era comemorar o ano novo no Coliseu, mas depois da aventura de não conseguir transporte até a estação Termini, caminhar a pé por 20 minutos, parar numa cafeteria onde uma senhora gorda e com dentes mal cuidados gritava enquanto tentava consertar a luz que caía a cada dois minutos, comer uma pizza requentada em uma lanchonete indiana, – ainda há alguma pizzaria italiana em Roma?- e perderem-se um do outro no metrô,  o máximo que eles conseguiram foi chegar até o Circus Massimus.  Ele ainda estava bravo pelo fato de ela ter se perdido dele no metrô, ela ainda sentia-se mal por ter feito uma nova besteira. Mas ele despiu-se do rancor e a beijou à meia-noite. Um beijo insosso, desses que os atores globais se dão em novelas das seis, pouca língua, pouca saliva, pouca verdade. Mas ela sentia-se feliz, nunca fora beijada em noite de ano novo, era um pedacinho de sonho a realizar-se.
A noite corria bem, ele gostava da música, compartilhava seus risos com ela, tomava-a da mão. Ela sentia a felicidade no corpo, nas maçãs do rosto, no seu próprio riso. Mas o álcool a tomou rapidamente e ela ficou frágil e sonolenta. Ele começou a achar aquilo um saco. Que droga de companheira de farra era aquela? Quando cansou-se de carregá-la por todos os lados, resolveu voltar para casa que ficava a uma hora de caminhada, com sorte, e eles nem sabiam por onde começar. No meio do caminho, ela recebeu um golpe do destino. Em uma cafeteria qualquer de Roma, uma loira de olhos claros e ternos roubou dela o que de atenção ela ainda supunha receber dele. Ao sair, ele falou tanto da moça que ela se sentiu enterrar entre as ruínas romanas. Não podia competir com aquela beleza. Sentia-se esmagada. Ela estava ali, era toda dele e ele não a via.
Quando na cama os olhos fecharam-se em busca do sono que não vinha, ele veio tocá-la. Ela o rejeitou, ele a feriu, e já não havendo lágrimas, ela adormeceu entre mágoas que tornavam o novo ano nada mais que um borrão inicial.


quinta-feira, 5 de março de 2015

A arte do encontro

Terça-feira, 30 de dezembro de 2014, Florença, Itália.

Último dia em Florença, a cidade do renascimento onde ela continuava a parecer morrer. Era como se o tempo todo e a qualquer momento fossem lhe saltar as lágrimas. Ele só pensava em descansar bastante, percorrer o máximo o que lhe interessasse e satisfazer seus instintos primitivos. Abastecia-se de comida, cultura e sexo sem carinho e sem compromisso. O que mais um homem poderia querer?
Ela fazia de tudo para agradá-lo, mesmo quando isso a deixava cansada e infeliz. Ela que esperava ser acordada com beijos e um cappuccino, via-se a buscar o café dele na padaria mais próxima. De agradecimento? Uma reclamação por ela ter esquecido o açúcar. Cada vez que fazia algo errado, ela sentia-se mais idiota. Por mais que se empenhasse, ela nunca fazia algo completamente certo, simplesmente não conseguia concentrar-se em absolutamente nada mais que na própria desilusão e na rejeição sofrida pelo amor que ele tanto cultivara e para o qual já não dava a mínima, antes, lhe era incômodo.
Era o último dia ali e ela juntava forças, não sabia de onde, para levar algo bom de tudo aquilo. Na terra das ideias que salvaram o mundo da ignorância e o encheram de beleza, ela esforçava-se para encontrar em si algo de belo e para salvar sua alma da própria tristeza.
Estiveram todo o dia a passear por igrejas, museus, ruas lindas e estreitas da formosa Florença. Alguns risos naturais escapavam dela às vezes. Havia sido um bom dia, não podiam negar. Ele até a presenteara com um livro, um livro de Neruda, “Confieso que he vivido”, era o que ela sonhara dizer ao fim daquela viagem que prometera ser a viagem da sua vida.
De volta ao hotel, a promessa de voltar a sair e despedir-se da cidade fazia-se difícil. A cama aconchegante os abraçava com total entrega, mas desvencilharam-se dela e enfim saíram. Nova briga. Ficaram estagnados. Ele negava-se a oferecer-lhe o braço numa simples atitude de cavalheirismo e cuidado. Ela quedava-se a perguntar em que momento o “todavia me puedes tomar del brazo”, dito em Madri, havia-se transformado em “no me jodas”. Só lembrava que havia sido rápido demais e ela não pudera acompanhar. Por fim, o impasse se desfez, apesar dos pesares, ela não queria destruir aquela última noite e, como sempre, cedeu.
A cerveja deixava as coisas sempre mais tragáveis, mas ela se embriagava rápido demais e nunca o acompanhava. Ele bebia, bebia, e punha-se a falar das mulheres que amou, às quais, ela sabia, nunca se equipararia. Ela ficava a ouvir tudo, pacientemente, só para mirar-lhe os olhos, que diferentes dele, eram extremamente doces e tinham uma cor só conseguida quando um fio de mel é tocado por um raio de sol. Poderia passar horas apenas olhando aqueles olhos, incansavelmente.

Ao fim da noite, em meio à madrugada fria do inverno italiano e ao gelo dos seus pensamentos sombrios, ela foi tomada por um beijo, um beijo suave, longo, carinhoso. Fê-la lembrar-se do primeiro beijo, quando o céu abriu-se para ela. As lágrimas vieram brincar nos seus olhos, mas ela não as deixou cair, negou-se. Estava feliz, feliz! No hotel, seguiram-se outros beijos. Já não havia frio, seu corpo nu passeava pelas mãos dele, entregue, como se houvesse morado ali uma vida inteira, e carne e carne se cruzaram num prazer inefável, indizível. No chuveiro, novamente ela não acreditou quando ele a beijou e deixou-se estar. Entregou-se tanto que perdeu o medo, esqueceu-se da dor e da mágoa e quando tudo parecia perfeito e renascido, o dia amanheceu fazendo com que ele recuasse e desse a ela de bom dia uma dose de arrependimento.

A arte do desencontro

Segunda-feira, 29 de dezembro de 2014, Florença, Itália.


Chegaram a Florença em um dia lindo. Apesar do frio, o sol brilhava radiante. Ela, em contraste, sentia-se destruída. Acordara cedo, como sempre acontecia nos dias de viagem- e esses dias pareciam acercar-se cada vez mais rapidamente – não houvera tempo para grandes cuidados. Tinha o cabelo acabado pela água quente, o rosto queimado pelo frio e a autoestima derrubada pela maneira como ele a olhava. Sentia-se profundamente sozinha, triste e cansada. Olhou-se com temor no espelho do café e notou que ele refletia toda a sua tristeza.
O hotel ficava um pouco longe do centro, tiveram de caminhar por cerca de 30 minutos até finalmente encontrá-lo. Ele, claro, não podia fazê-lo sem o seu andar apressado e sem as reclamações habituais. Desde Barcelona, andava sempre como se estivesse atrasado para um encontro e reclamava de tudo que não lhe saía tal qual sua vontade, e até isso, não sabia bem porque, fazia-a sentir-se culpada.

Apesar de um pouco afastado, o hotel era uma graça e situava-se em um aconchegante bairro residencial. O quarto era, no entanto, frio, frio como o coração dele mostrava-se a ela a cada dia. Como acontecia de forma cada vez mais frequente, eles discutiram logo na chegada. O coração magoado dela procurava as respostas, ele não estava interessado em perguntas, e a feriu ainda mais. Ela chorou, chorou, chorou e ele veio depois adormecer em seus braços tão mutilados de cansaço. Não entendia por que, mas sempre terminava nos braços dela, entre suas pernas e seios.

A arte do desencontro

Domingo, 28 de dezembro de 2014, Veneza, Itália.


Segundo dia em Veneza, que era, na verdade, o primeiro. Demorara a amanhecer naquele quarto frio. Saíram já quase à hora do almoço. A cidade era esquisitamente linda durante o dia. Havia um colorido que emanava daquelas ruínas em meio àquelas águas de um verde não saudável.
Ela perguntava-se onde estava escondida aquela cidade na noite anterior. Até uma pista de patinação no gelo brotara do nada. Genial! Sentiu-se alegre por alguns minutos, mas vez em quando a melancolia sussurrava-lhe ao ouvido. Ela fingia não ouvir, mas nunca fora boa em dissimular.
Era uma cidade para os amantes, não tinha dúvidas. Quando escolheu ir lá, pensara nisso. Como não se apaixonar na cidade mais romântica da Europa? Ela tristemente descobriu que para ele isso era possível.
Ele achava tudo incrível. Era apaixonado por ruínas, cidades antigas, prédios antigos. Veneza era perfeita para ele. Antiga, em ruínas e com um concerto de Vivaldi em cada esquina. Para ela, era irrelevante, não entendia de música clássica. Para ele era o paraíso. Para variar, discutiram por isso. Mas o passeio estava agradável naquele dia que se fizera noite. Última noite em Veneza... Um pouco de álcool para acalmar os ânimos e recompor a alma.

Desde que chegara à Europa e ele demonstrara não querê-la, ela sempre achava que precisava de uma dose a mais. Só assim ela divertia-se, só assim ela libertava-se. Em meio à embriaguez, doía-lhe menos o fato de haver sempre uma europeia tão linda para ele quanto ela jamais seria.

A arte do desencontro

Sábado, 27 de dezembro de 2014, Veneza, Itália.

A viagem para a Itália não teve nada de sonho europeu, foi antes de tudo um pesadelo. Saíram de Paris atrasadíssimos e ela ainda pensou haver esquecido a câmera no hotel. Não havia. Andava tão aérea em meio àquela aura de desejos reprimidos e sonhos esmagados que esquecera que havia posto a câmera no bolso da jaqueta. Ela se odiou, ele a odiou. Ela se sentia tão mal que mesmo sendo muito cética, pedia em pensamento o tempo todo: por favor, que cheguemos a tempo.
Por fim, chegaram a tempo, a tempo demais. O voo atrasou cinco horas, cinco horas em que eles tiveram de ficar ali a odiar-se mutuamente. Durante anos, eles tiveram o que dizer por horas seguidas, quase que diariamente, e eles nem se conheciam... Agora eles estavam frente a frente há apenas dez dias e lhes escapava pouco mais que um olhar de reprovação e tristeza. Ela então trocou o olhar vazio por papel e caneta e transformou em poema toda a sua desilusão. Em meio a tanta espera, ela não encontrou o ombro da noite anterior. Era já outro dia.
Chegaram a Veneza à noite, uma noite gelada, com pouca luz e de comunicação reduzida. Ninguém falava a língua deles. Foram indo meio levados pelo vento e quase não encontraram o hotel. A cidade era um labirinto congelante em ruínas. Ela não encontrava melhor palavra para descrevê-la que ASSUSTADORA.  Era inverno na romântica Veneza e o único pensamento que ela conseguia ter era: os dedos dos meus pés estão congelando! Por fim, ele encontrou o caminho. Era muito bom nisso, talvez decodificasse o caminho em números.

No hotel de calefação inibida, eles dormiram abraçados, mas quando os lençóis se aqueceram, ela fugiu dele e dormiu apenas sob o calor do próprio cobertor.

terça-feira, 3 de março de 2015

A arte do desencontro

Sexta-feira, 26 de dezembro de 2014, Paris, França.


Último dia em Paris. Dia do tour cultural parisiense. Museu D’Orsay, Louvre, Versalhes - este, na verdade, nem em Paris fica. Chegar às nove ao primeiro museu, ficar duas horas, almoçar, ir a Versalhes, ficar entre três e quatro horas e ir ao Louvre. Era o plano. Ela acordou às nove e, como em todos os dias, começou a lutar para despertá-lo. Nunca cumpriam os planos, nunca cumpriam os horários e com muita sorte ainda não tinham perdido nenhum trem nem nenhum voo. Com muita luta, chegaram ao D’Orsay às dez e meia, entraram quase às onze e desperdiçaram muitos euros, não lhes foi possível ver quase nada. Não havia tempo, simplesmente. Era isso ou perder Versalhes, Louvre, então, tchau D’Orsay, foi bom o meio encontro.
Versalhes ficava um pouco distante do centro de Paris, eram muitos minutos de trem até lá. Os arredores eram muito tranquilos, pacatos. Quem diria que ali vivera o tão badalado rei Luís XIV. Era tudo mais melancólico, doce, calmo e impressionantemente frio. Puta que pariu, como era frio!
O palácio do rei sol era tão impressionante que ela que nunca estivera ali, mal conseguia entender-se de fato ali, sentia-se dentro de um livro de história. Ele, que já estivera, movia-se encantado como uma criança. Aliás, comportar-se como uma criança era algo inerente à personalidade dele, às vezes, chegava a assustá-la. Quando menos esperava, deparava-se com um garotinho em seus braços a pedir carinho em um tom de voz que não ia além dos oito anos. Amor, estranho amor...
Era novamente um dia bastante nublado, o sol parecia ter sido apenas uma cortesia natalina. Fora, nos imensos jardins do palácio, estava lindamente triste. Ela olhava, longe, longe... Quantos se haverão amado em meio àquela pintura tão real... Princesas, reis, súditos, gente normal. Mas ela não amaria ninguém ali, nem seria amada e ponto.
Quando chegaram ao jardim, o dia já estava se despedindo. O frio era cortante, tão cortante quanto as palavras dele que vez ou outra faziam questão de reafirmar a ela, não somos namorados, não exija de mim mais que as migalhas que às vezes te ofereço. Ao menos era assim que ela ouvia, acrescido de um não insista, você não é boa o suficiente para mim. Queria tão pouco, um abraço que a protegesse do frio, uma palavra de carinho e uma gentileza como pedir o lanche para ela já seriam suficientes. Mas para ele já era demais. Não entendia a necessidade dela e aborrecia-lhe a insistência. Ela cansou de tanto suportar, afastou-o e as lágrimas rolaram-lhe livremente pela face. Naquele momento, algo naquela cena mexeu com ele. Percebeu enfim que a machucara de verdade, pela primeira vez, ela sequer o queria por perto. Pela primeira vez, ela lhe dizia não. Ele se perguntou o que estava fazendo. Queria consertar aquilo, mas não sabia o que fazer, o que dizer. Afastou-se como ela pedira, acompanhou-a de longe e em silencio, a inventar meios de tornar aquilo menos doloroso. Na saída, ele a abraçou, ela chorou ainda mais. Que falta ela sentia daquele carinho, que triste que ele não pudesse ser sempre assim. A viagem de trem até Paris foi confortante. Eles dormiram no ombro um do outro. Há quanto tempo não o faziam? Nesses poucos momentos de ternura, emanava deles uma beleza, uma paz...
O passeio no Louvre era a última parada de Paris, despediam-se da cidade mais amada e comentada do mundo em grande estilo. A despedida foi tão demorada que à hora do jantar a impessoalidade voltou a dar-lhes um beijo.
Já na cama, quase adormecida, ela sentiu a mão dele percorrer-lhe as costas e estremeceu. Mas já não queria seguir com a síndrome do dia seguinte, cada vez que se entregava a ele sentia-se mais dependente daquele sentimento. Lutou para não entregar-se, mas ela era pequena, frágil, ele a teve facilmente presa em seus braços. Quando já o corpo dela deslizava sobre dele, ela indagou-lhe se não lhe importava machuca-la e ele se importou. Como à tarde no jardim, ele percebeu que a feria e renunciou ao próprio prazer. Não queria fazê-la sofrer, mas como era bom estar dentro dela... E na última noite noite em Paris, eles adormeceram sobre o próprio desejo.